Como devemos interpretar Gênesis 1-11?
Qualquer pessoa que já tenha passado algum tempo lendo a Bíblia já percebeu que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento contêm diversos gêneros literários. Encontramos parábolas, poesia, visões proféticas, sonhos, epístolas, provérbios e narrativas históricas, sendo que este último gênero compõe a maioria do conteúdo bíblico. Portanto, como devemos interpretar os capítulos 1-11 de Gênesis? São história? São mitologia ou poesia simbólica? São uma alegoria ou parábola? Ou talvez uma visão profética? Será que são uma amálgama de todos esses gêneros, ou algum tipo de gênero inédito? Afinal de contas, será que realmente importa?
Abordaremos esta última pergunta mais tarde; por enquanto é suficiente salientar que, se queremos interpretar essa passagem corretamente, é imprescindível chegar à conclusão correta quanto ao seu gênero literário. Se interpretarmos de forma literal algum elemento que o autor queria que fosse entendido de forma figurativa, estaremos interpretando mal o texto. Quando Jesus disse “Eu sou a porta” (João 10:9), ele não quis dizer que era feito de madeira e tinha dobradiças em um lado. Por outro lado, também cometeremos um erro se interpretarmos como figurativo algum elemento que o autor queria que fosse entendido de forma literal. Quando Jesus disse: "O Filho do Homem será traído e entregue em mãos humanas. Será morto, mas no terceiro dia ressuscitará” (Mateus 17:22-23), Ele claramente se expressou de forma tão literal quanto um homem que diz à sua esposa: “Amor, vou encher o tanque de gasolina e volto daqui a uns minutos”.
Há muitas linhas de evidência que poderíamos considerar para determinar o gênero de Gênesis 1-11. Por exemplo, poderíamos usar a evidência interna que há no livro de Gênesis e estudar como a Igreja tem interpretado esses capítulos ao longo de sua história. No entanto, nosso objetivo neste capítulo é responder à pergunta: “Como os outros autores da Bíblia (salvo Moisés, o autor de Gênesis1) e Jesus os interpretavam?” Com base na minha leitura e experiência, tenho chegado à conclusão de que a maioria das pessoas que abordam essa questão de como se deve interpretar os primeiros capítulos de Gênesis nunca fizeram (e muito menos responderam) essa pergunta.
Para começar, pense em como Deus descreve a maneira como Ele falou com Moisés, ao contrário da maneira como falava com outros profetas. Lemos o seguinte em Números 12:6-8:
O Senhor lhes disse: “Ouçam o que vou dizer:“Se houver profeta entre vocês, eu, o Senhor, me revelarei em visões; falarei com ele em sonhos. Não é assim, porém, com meu servo Moisés; ele tem sido fiel em toda a minha casa. Falo com ele face a face, claramente, e não por meio de enigmas; ele vê a forma do Senhor. Como vocês ousaram criticar meu servo Moisés?”.
Esse trecho nos diz que Deus falava “claramente” com Moisés, e não por meio de “enigmas”, ou seja, sem usar uma linguagem obscura. Isso sugere fortemente que não deveríamos buscar significados enigmáticos ou difíceis de entender nos escritos de Moisés. Antes, devemos ler o livro de Gênesis com o entendimento de que se trata de um registro histórico, exatamente como parece. Podemos confirmar essa afirmação por meio de uma análise da maneira como o livro de Gênesis é interpretado no resto da Bíblia.
Uma análise da produção dos outros autores do Antigo Testamento revela que poucos fazem alusão a Gênesis 1-11. No entanto, todos aqueles que mencionam esses capítulos os tratam como um registro histórico literal.
Os judeus tinham muito cuidado com suas genealogias. Por exemplo, Neemias 7:61-64 relata que qualquer homem que queria servir no templo reconstruído precisava comprovar que era descendente da linhagem sacerdotal de Arão. Aqueles que não podiam comprovar isso não recebiam autorização para servir como sacerdotes. Os primeiros 8 capítulos de 1 Crônicas contêm uma série muito longa de genealogias que remontam à época de Adão. Quando ele é comparado com os capítulos 5 e 11 de Gênesis, o capítulo 1 (vv. 1-18) de 1 Crônicas não tem nenhuma omissão ou acréscimo de nomes nas ligações genealógicas entre Adão e Abraão. É óbvio que o autor de 1 Crônicas considerava essas genealogias como historicamente precisas.
A única ocorrência da palavra hebraica mabbul (traduzida como “dilúvio”) fora de Gênesis 6-11 é em Salmo 29:10.2 Deus literalmente se assentou como Rei no Dilúvio global da época de Noé. Se não se tratasse de um evento histórico, a afirmação desse versículo seria ineficaz, e a promessa contida no versículo 11 pouco teria feito para consolar o povo de Deus.
Os versículos 6-9 do Salmo 33 afirmam que Deus criou tudo de forma sobrenatural por meio de Sua Palavra, o mesmo que é afirmado repetidamente em Gênesis 1. As criaturas começaram a existir de forma instantânea quando Deus disse “Haja …”. Deus não precisou esperar milhões ou milhares de anos até o surgimento da luz, da terra seca, das plantas e animais, ou de Adão. “Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo surgiu” (Salmo 33:9).
Os versículos 5 e 19 do Salmo 104 mencionam eventos que aconteceram durante a semana da criação.3 No entanto, os versículos 6-9 deste salmo incluem informação adicional que não encontramos em Gênesis 8, onde é descrito como as águas baixaram, retrocedendo da terra no final do Dilúvio.4 O Salmista claramente quis descrever eventos históricos.
Em perfeita forma poética, o Salmo 136 conta muitas das obras poderosas que Deus fez ao longo da história, começando com afirmações sobre alguns de Seus atos de criação em Gênesis 1.
Em Isaías 54:9, Deus diz o seguinte a Israel (uma repetição da promessa encontrada no Salmo 104:9): “Para mim isso é como os dias de Noé, quando jurei que as águas de Noé nunca mais tornariam a cobrir a terra. De modo que agora jurei não ficar irado contra você, nem tornar a repreendê-la”. A promessa de Deus seria totalmente ineficaz se o Dilúvio da época de Noé não fosse um fato histórico. Ninguém creria na Segunda Vinda de Cristo se sua promessa (registrada em Mt 24:37-39) fosse expressada da seguinte maneira: “Assim como o Papai Noel chega do Polo Norte na Véspera de Natal em seu trenó puxado por renos, e coloca presentes para a família inteira debaixo da árvore de Natal em cada casa, assim também Jesus voltará como Rei dos reis e Senhor dos senhores”. Aliás, esse tipo de analogia convenceria as pessoas de que a Segunda Vinda é um mito.
Em Ezequiel 14:14-20, Deus menciona Noé, Daniel e Jó várias vezes, mostrando claramente que cada um desses homens justos era um personagem histórico. Não existem razões para duvidar que Deus realmente quis dizer que tudo o que a Bíblia ensina sobre esses homens é historicamente preciso.
O Novo Testamento se refere aos primeiros capítulos de Gênesis com muito mais frequência do que o Antigo Testamento.
As genealogias apresentadas em Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38 mostram que Gênesis 1-11 é uma narrativa histórica. Todas as ligações dessas genealogias devem ser históricas; caso contrário, teríamos que concluir que Jesus foi descendente de um mito, e portanto não poderia ter sido um ser humano real; por conseguinte, Ele não seria o nosso Salvador e Senhor.
Paulo baseou a sua doutrina do pecado e da salvação no fato de o pecado e a morte terem entrado no mundo através de Adão. Jesús, o Último Adão, entrou no mundo para trazer justiça e vida aos homens e reverter os estragos causado pelo primeiro Adão (Romanos 5:12-19; 1 Coríntios 15:21, 45-47) Paulo afirmou que a serpente enganou Eva, e não Adão (2 Coríntios 11:3; 1 Timóteo 2:13-14). Ele fez uma interpretação literal de Gênesis 1-2 quando afirmou que Adão foi criado primeiro, enquanto Eva foi feita do corpo de Adão (1 Coríntios 11:8-9). Em Romanos 1:20, Paulo mencionou que os homens têm visto a evidência da existência de Deus e alguns de Seus atributos desde a criação do mundo.6 Isso quer dizer que Paulo acreditava que o homem esteve presente já no início da história, não bilhões de anos depois desse início.
Da mesma forma, Pedro baseou alguns de seus ensinamentos na história literal de Gênesis 1-11. Ele menciona o Dilúvio em 1 Pedro 3:20, 2 Pedro 2:20 e 2 Pedro 3:3-7. Ele considerava o relato sobre Noé e o Dilúvio como um evento tão histórico quanto aquele relatado em Gênesis 19 (o juízo contra Sodoma e Gomorra). Ele afirmou que somente oito pessoas foram salvas, e que o Dilúvio foi um acontecimento global, assim como será também o juízo na Segunda Vinda de Cristo. Ele argumentou que os escarnecedores negarão a possibilidade de uma Segunda Vinda pelo fato de eles também negarem a criação sobrenatural e o dilúvio de Noé. Pedro também informou aos seus leitores que os escarnecedores continuarão negando porque sua lógica é baseada na pressuposição filosófica que hoje chamamos de “naturalismo uniformitário”: “tudo continua como desde o princípio da criação” (2 Pedro 3:4).7
Uma das objeções que se tem feito é que os apóstolos não entendiam a diferença entre verdade histórica e mito. Mas essa objeção também é falsa. Em 1 Coríntios 10:1-11, Paulo, ao mencionar várias passagens do Pentateuco que descrevem milagres, enfatiza nos versículos 6 e 11 que “essas coisas aconteceram”. Em 2 Timóteo 4:3-4, Paulo escreveu:
Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, sentindo coceira nos ouvidos, juntarão mestres para si mesmos, segundo os seus próprios desejos. Eles se recusarão a dar ouvidos à verdade, voltando-se para os mitos.
Neste versículo, a palavra grega traduzida “mitos” é μύθος (ou seja, mito). Essa mesma palavra é usada em contraposição com as palavras “verdade” e “sã doutrina” em 1 Timóteo 1:4 e 4:7, Tito 1:14 e 2 Pedro 1:16. Naquele mundo do primeiro século antes de Cristo, onde havia muitos mitos gregos, romanos e judeus, os apóstolos entendiam claramente a diferença entre verdade e mito e afirmavam constantemente que a Palavra de Deus contém verdade, e não mito.
A Bíblia é fiel, confiável e verdadeira. As Escrituras não podem ser contrariadas nem refutadas.
Em João 10:34-35, Jesus defendeu sua reivindicação de divindade quando Ele citou Salmo 82:6 e logo declarou que “a Escritura não pode ser anulada”. Isso quer dizer que a Bíblia é fiel, confiável e verdadeira. As Escrituras não podem ser contrariadas nem refutadas. Em Lucas 24:25-26, Jesus repreendeu Seus discípulos por não terem crido em tudo o que os profetas falaram (algo que Ele equipara a “todas as Escrituras”). Isso significa que Jesus considerava que todas as Escrituras são confiáveis e dignas da nossa fé.
Outra maneira em que Jesus revelou Sua confiança total nas Escrituras foi Seu hábito de tratar como fato os relatos contidos no Antigo Testamento, os mesmos relatos que a maioria das pessoas de hoje consideram como mitos inacreditáveis. Esses relatos históricos incluem as histórias de Adão e Eva, o primeiro casamento (Mateus 19:3-6, Marcos 10:3-9), Abel, o primeiro profeta que sofreu morte de mártir (Lucas 11:50-51), Noé e o Dilúvio (Mateus 24:38-39), as experiências de Ló e sua esposa (Lucas 17:28-32), o juízo de Deus sobre Sodoma e Gomorra (Mateus 10:15), Moisés e a serpente durante os anos em que Israel vagou no deserto após o êxodo do Egito (João 3:14), Moisés e o maná que desceu do céu (João 6:32-33, 49), os milagres de Elias (Lucas 4:25-27) e Jonas no ventre do grande peixe (Mateus 12:40-41). Como Wenham tem argumentado de forma convincente,8 Jesus não tratou esses relatos como alegorias, mas como eventos históricos que realmente aconteceram, e que aconteceram exatamente como foram descritos no Antigo Testamento. Jesus usou esses relatos para ensinar a Seus discípulos que outros eventos - Sua própria morte, ressurreição e Segunda Vinda - certamente aconteceriam na realidade do espaço-tempo. Jesus também mostrou que as Escrituras são essencialmente compreensíveis (ou claras): os escritores dos evangelhos incluíram nos seus relatos 11 trechos em que Jesus fez a pergunta “Vocês nunca leram…?”9 . Além disso, 30 vezes Jesus usou as palavras “Está escrito”10 para defender os seus ensinamentos. Ele repreendeu os Seus ouvintes por não entenderem e crerem o que o está claramente expresso no texto.
Além da evidência já mencionada (o fato de Jesus ter considerado os capítulos 1-11 de Gênesis como relatos objetivos, históricos e confiáveis), os escritores dos evangelhos também registraram três declarações importantes que nos mostram a cosmovisão de Jesus. Uma análise minuciosa destes versículos (Marcos 10:6; Marcos 13:19-20; Lucas 11:50-51) revela que Jesus acreditava que Adão e Eva existiam no período geral em que Deus criou o resto das coisas criadas (e que Abel viveu pouco tempo depois disso), não milhões ou bilhões de anos depois de Deus ter criado o resto das coisas.11 Isso mostra que Jesus considerava que os dias da criação foram dias literais de 24 horas. Portanto, baseado em tudo o que Jesus disse, seria justificado chamá-Lo de criacionista de terra jovem.
Uma objeção que se tem feito é que estas afirmações de Jesus foram simplesmente Sua forma de adaptar Seus ensinamentos às crenças culturais da época. Mas essa objeção é falsa, pelas seguintes quatro razões: Primeiro, Jesus era a verdade (João 14:6). Nunca saiu de Sua boca nenhuma palavra enganosa ou errônea (1 Pedro 2:22). Até mesmo Seus inimigos disseram: “Mestre, sabemos que és íntegro e que não te deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens, mas ensinas o caminho de Deus conforme a verdade” (Marcos 12:14). Segundo, Jesus ensinava com autoridade, baseando-se na palavra de Deus, que Ele chamava de “verdade” (João 17:17), e não nas tradições, como ensinavam os fariseus (Mateus 7:28-29). Terceiro, Jesus com frequência teve confrontações ousadas com todo tipo de erros no pensamento e comportamento de Sua audiência, mesmo quando isso significava correr o risco de ser perseguido (Mateus 22:29; João 2:15-16, 3:10, 4:3-4, 9; Marcos 7:9-13). Finalmente, Jesus enfatizava a importância fundamental de crer nas palavras de Moisés de forma simples e direta (João 5:45; Lucas 16:31, 24:25-27, 24:44-45; João 3:12, Mateus 17:5).
Devemos considerar os capítulos 1-11 de Gênesis como um relato direto, preciso e histórico porque assim é como Jesus, os apóstolos e todos os outros escritores da Bíblia os abordaram. Não há base bíblica alguma para abordar esses capítulos como se fossem alguma espécie de gênero literário não literal ou figurativo. Essa consideração deveria ser razão suficiente para interpretar Gênesis 1-11 com essa mesma abordagem literal. Mas existem outras razões importantes para fazer isso.
Somente uma abordagem literal e histórica de Gênesis 1-11 fornece um fundamento adequado para o evangelho e para a esperança futura do evangelho. Jesus entrou no mundo para resolver o problema do pecado, um problema que começou numa história real no espaço-tempo, num Jardim do Éden real com duas pessoas reais chamadas Adão e Eva, e com uma serpente real que falou com Eva.12 Como resultado do pecado de Adão e Eva, eles experimentaram uma morte espiritual e física, mas além disso, uma maldição divina caiu sobre a criação que outrora tinha sido “muito boa” (vide Gênesis 1:31 e 3:14-19). Jesus voltará para libertar todos os cristãos e a própria criação de sua sujeição à inutilidade (Romanos 8:18-25). Depois disso, haverá um novo céu e uma nova terra, onde habitará a justiça, e onde o pecado, a morte e as calamidades naturais não existirão mais. Uma abordagem não literal ao livro de Gênesis destrói essa mensagem da Bíblia, sendo, em última análise, um ataque contra o caráter de Deus.13
Gênesis também é um livro fundamental para entender outras doutrinas importantes mencionadas no resto da Bíblia (por exemplo, a necessidade de uma amorosa liderança masculina no lar e na Church).
A Bíblia é claríssima. Devemos crer que os capítulos 1-11 de Gênesis são um relato histórico literal porque isso foi que Jesus, os Apóstolos do Novo Testamento e as profetas do Antigo Testamento acreditavam, e porque esses primeiros capítulos de Gênesis são fundamentais para entender o resto da Bíblia.
Sempre temos afirmado, junto com muitos outros criacionistas, que não é necessário crer que os capítulos 1-11 de Gênesis são literais para ser salvo. Somos salvos quando nos arrependemos dos nossos pecados e confiamos unicamente na morte e Ressurreição de Jesus Cristo para sermos salvos (João 3:16; Romanos 10:9-10). No entanto, se confiamos em Cristo sem ao mesmo tempo confiar em Gênesis 1-11, somos seguidores inconsistentes e infiéis do nosso Senhor.
Deus disse o seguinte através do profeta Isaías (vide Isaías 66:1-2):
Assim diz o Senhor: “O céu é o meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés. Que espécie de casa vocês me edificarão? É este o meu lugar de descanso? Não foram as minhas mãos que fizeram todas essas coisas, e por isso vieram a existir?”, pergunta o Senhor. “A este eu estimo: ao humilde e contrito de espírito, que treme diante da minha palavra”.
Você quer ser uma pessoa que treme diante das palavras de Deus em vez de crer nas palavras falíveis e errôneas de evolucionistas que formulam hipóteses e mitos que negam a Palavra de Deus? Em última análise, nossa abordagem à interpretação correta de Gênesis 1-11 é uma questão de aceitar a autoridade da Palavra de Deus.